terça-feira, 15 de fevereiro de 2011


Vincent van Gogh, Autoportrait au Chapeau de Paille, 1887
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«Estendeu-me um espelho, e nele revi a unidade da minha pessoa desintegrar-se em muitos eus, tantos que pareciam até mais do que da primeira vez. Só que as figuras agora eram muito pequenas, do tamanho pouco mais ou menos de peças normais de xadrez; e o jogador, pegando com gesto firme e silencioso em duas ou três dúzias, colocou-as no chão junto ao seu tabuleiro. E monocordicamente, como alguém que debita uma lição ou um discurso não sei quantas vezes já recitado, falou:

"É já do seu conhecimento a concepção errónea e eventualmente maléfica de que o homem é uma unidade duradoura. Também é do seu conhecimento que o homem consiste numa multiplicidade de almas, de inúmeros eus. É considerado loucura cindir nestas incontáveis fracções a aparente unidade da pessoa, é aquilo a que a ciência deu o nome de esquizofrenia. A ciência tem razão no sentido em que não é possível domar uma multidão sem orientação, sem uma certa ordem e um certo agrupamento. Em contrapartida, peca supondo que apenas é possível ordenar os muitos sub-eus uma única vez durante toda a vida, e para sempre. Este erro da ciência tem certas consequências funestas, o seu único mérito resume-se em simplificar o trabalho de professores e educadores empregados pelo Estado, e poupar-lhes reflexão e experimentação. É na sequência deste erro que se toma por "normal", por expoente social, muita gente que é irremediavelmente louca, e que inversamente se faz passar por loucos outros tantos que afinal são génios. Daí completarmos a lacunar doutrina espiritual da ciência com o conceito a que chamamos 'arte da reconstrução'. Demonstramos àquele que assistiu ao despedaçar do seu eu que a qualquer momento pode voltar a arrumar as peças na ordem que lhe aprouver, podendo assim consumar a infinita multiplicidade do jogo da vida. Assim como o escritor a partir de um punhado de personagens cria um drama, assim nós a partir das figuras do nosso eu retalhado construímos grupos sempre novos, com jogos e tensões sempre novos, situações eternamente novas. Ora veja!"
(...)
"É isto a arte da vida", proferiu doutamente. "A partir de agora o senhor mesmo poderá moldar e animar, intrincar e enriquecer o jogo da sua vida como lhe apetecer, está nas suas mãos. Assim como a loucura num sentido elevado é o princípio de toda a sabedoria, assim também a esquizofrenia é o princípio de toda a arte, de toda a imaginação."»
Hermann Hesse, O Lobo das Estepes


Vincent van Gogh, L'Église d'Auvers,1890
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«"Razão tem-la tu toda, Lobo das Estepes, mil vezes razão, mas mesmo assim tens de desaparecer. És demasiado exigente e esfomeado para um mundo como o de hoje, simples, cómodo e contente com tão pouco, é esse mundo que te vomita para fora, tens para ele uma dimensão a mais. Quem quer viver e disfrutar da sua vida nos nossos dias, não pode ser uma pessoa como tu ou eu. Para quem requer música em vez de barulheira, alegria em vez de prazer, alma em vez de dinheiro, trabalho puro em vez de activação, paixão pura em vez de brincadeira, este mundo lindíssimo não é pátria ... "

"Mas como é que tu vês isto: achas que pessoas como nós, pessoas com uma dimensão a mais, não podem viver aqui? Mas qual será a razão? Será um fenómeno exclusivamente dos nossos dias? Ou terá sido sempre assim?"

"Não sei. A bem da dignidade do mundo, quero crer que seja apenas do nosso tempo, que não passe duma doença, duma desgraça momentânea. Os líderes trabalham valorosa e vitoriosamente na próxima guerra, e nós, entretanto, vamos dançando o fox-trot, ganhando dinheiro e chupando bombons - numa época como a nossa, o mundo realmente não podia ter aspecto mais digno, mais razoável... Esperemos que houvesse outras épocas melhores, e que outras venham a haver, melhores também, mais ricas, mais vastas, mais profundas. Mas isso não nos adianta nem nos atrasa. E quem sabe se não foi sempre assim ... "

"Sempre assim como agora? Sempre um mundo só para os políticos, os escroques e os trapaceiros, os criados de café e os disfrutadores da vida, e sem ar para as pessoas?"

"Pois é, não sei, e ninguém sabe. Aliás pouco importa. Mas agora, meu amigo, veio-me à ideia o teu bem-amado, de que me tens falado algumas vezes e até lido cartas, o Mozart. Como estavam as coisas, no tempo dele? Quem é que governava o mundo, arrebanhava sempre o melhor, dava o tom e pontuava alguma coisa: Mozart ou os obreiros dos negócios, Mozart ou as pessoas simples e comezinhas de todos os dias? E como é que ele morreu e foi enterrado? Por isso creio que provavelmente terá sido sempre assim e sempre assim há-de ser, e aquilo a que na escola se chama "história universal" e que nos obrigam lá a aprender de cor, para nos instruirmos, com todos aqueles heróis e génios, aqueles feitos e sentimentos elevados - não passa de uma intrujice inventada pelos mestres para haver ensino e para que os miúdos andem ocupados com alguma coisa durante aqueles anos regulamentares. Sempre foi assim, e sempre assim há-de ser: o tempo e o mundo, o dinheiro e o poder, pertencem aos pequenos, aos comezinhos, e os outros, os verdadeiros homens, não possuem nada. Nada, excepto a morte".

"Nada a não ser isso?" "Sim, têm a eternidade".

"Queres dizer o nome, a glória para a posteridade?" "Não, Lobinho, não é a glória - então a glória tem algum valor? Acreditas por acaso que todos os homens verdadeiramente grandes, acabados, se tornaram célebres e ficaram para a posteridade? "

"Não, claro que não" .

"Portanto, não se trata de glória. A glória só existe para o ensino, é um assunto dos mestres de escola. Não é a glória, não! É aquilo a que eu chamo a eternidade. Os crentes chamam-lhe o reino de Deus. Ponho-me a pensar: nós, que somos todos homens, nós os mais exigentes, os nostálgicos, os que têm uma dimensão a mais, não conseguiríamos de todo viver se fora da atmosfera deste mundo não houvesse um outro ar para respirar, se para lá do tempo não existisse ainda a eternidade, e essa eternidade é o reino do verdadeiro. É a ela que pertencem a música de Mozart e os versos dos teus grandes poetas, a ela pertencem os santos, que fizeram milagres, sofreram e morreram como mártires e deram um grande exemplo aos homens. Mas à eternidade pertencem igualmente a imagem de toda a acção verdadeira, a força de todo o sentimento verdadeiro, mesmo que ninguém dê conta deles, os veja, os registe e os guarde para a posteridade. Na eternidade não há vindouros, só há contemporâneos" .

"Tens razão", disse eu.»
Hermann Hesse, O Lobo das Estepes

domingo, 6 de fevereiro de 2011


Claude Monet, Falaise près de Dieppe, 1882
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"Da altura a que nos encontrávamos, o mar já não se via, como em Balbec, semelhante às ondulações de montanhas soerguidas, mas, pelo contrário, tal como aparece de um pico ou de uma estrada que contorna a montanha, como um glaciar azulado ou uma planície deslumbrante situados a menor altitude. O recorte dos remoinhos parecia imobilizado e ter desenhado para sempre os seus círculos concêntricos; o próprio esmalte do mar, que mudava insensivelmente de cor, adquiria no fundo da baía, onde se cavava um estuário, a brancura azul de um leite onde barquinhos pretos, que não avançavam, pareciam apanhados como moscas. Não me parecia que se pudesse descobrir, em parte alguma, um quadro mais vasto. Mas, a cada curva, vinha juntar-se uma parte nova, e, quando chegámos a Doville, o esporão da falésia que até então nos escondera metade da baía recolheu-se, e vi subitamente à minha esquerda um golfo tão profundo como o que até ali tivera diante de mim, mas alterando-lhe as proporções e redobrando-lhe a beleza. O ar, nesse ponto tão elevado, tomava-se de uma vivacidade e pureza que me inebriavam. (...)
Às portas da povoação, quando o carro parou por um instante àquela altura acima do mar, e a vista do golfo azulado, como que de um cume, quase causava vertigens, abri a janela; o rumor distintamente percebido de cada onda que rebentava tinha, na sua suavidade e na sua nitidez, algo de sublime. Não seria como um índice de medição que, alterando as nossas imprecisões habituais, nos mostra que as distâncias verticais podem ser assimiladas às distâncias horizontais, ao contrário da representação que delas faz habitualmente o nosso espírito; e que, aproximando assim de nós o céu, não são maiores; que até são menores para um ruído que as transpõe, como fazia o das pequenas ondas, pois o meio que tem de atravessar é mais puro? E, com efeito, se recuássemos somente dois metros deixaríamos de distinguir esse rumor de vagas a que duzentos metros de falésia não haviam tirado a sua delicada, minuciosa e suave precisão. Eu dizia-me que a minha avó sentiria por ele essa admiração que lhe inspiravam todas as manifestações da natureza ou da arte em cuja simplicidade se lê a grandeza. A minha exaltação estava no auge e enaltecia tudo quanto me cercava."
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (IV - Sodoma e Gomorra)

Claude Monet, Cabane des Douaniers, Effet du Matin, 1882 
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"«Elas têm», disse eu, falando das gaivotas, «uma imobilidade e uma alvura de nenúfares brancos.» E, de facto, pareciam oferecer um alvo inerte às pequenas ondas que as baloiçavam, a ponto de estas, por contraste, parecerem, na sua perseguição, animadas de um intento e ganhar vida."
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (IV - Sodoma e Gomorra)

sábado, 5 de fevereiro de 2011


Claude Monet, La Falaise à Dieppe, 1882
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"E, em certos dias, o próprio mar parecia-me, pelo contrário, quase rural. Nos dias, muito raros, de verdadeiro bom tempo, o calor traçara sobre as águas, como através dos campos, uma estrada poeirenta e branca através da qual se erguia a fina ponta de um barco de pesca como um campanário de aldeia. Um rebocador, de que só se via a chaminé, fumegava ao longe como uma fábrica distante, ao mesmo tempo que, sozinho no horizonte, um quadrado branco e enfunado, certamente pintado por uma vela, mas que parecia compacto e como que calcário, fazia lembrar a esquina soalheira de algum edifício isolado, hospital ou escola. E as nuvens e o vento, no dia em que se juntavam ao sol, completavam, se não o erro do juízo, pelo menos a ilusão do primeiro olhar, a sugestão que ele desperta na imaginação. Pois a alternância de espaços de cores nitidamente separadas, como as que resultam no campo da contiguidade de culturas diferentes, as desigualdades ásperas, amarelas e como que lamacentas da superfície marinha, as barreiras, os taludes que furtavam à vista um barco onde uma equipa de ágeis marinheiros parecia ceifar, tudo isso, nos dias de tempestade, fazia do oceano algo tão variado, tão consistente, tão acidentado, tão populoso, tão civilizado como a terra transitável sobre a qual eu antigamente caminhava, e onde não tardaria a dar passeios."
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (IV - Sodoma e Gomorra)